Imaculado


Um dia ia no carro do pai, o Citroen Saxo que ainda hoje deixa saudades, e levava comigo alguns amigos. Na caixa de CD's estava o "Amai" do Paulo Bragança que eu lá tinha posto alguns dias antes. Começa a tocar o "Prelúdio" e o Vidinho diz " Ò Padeiro foda-se. Vais pôr música pa um gajo adormecer?" Como de costume eu não ligo e deixo o CD a rolar. Tocam de seguida "Noite, Janeiro, Lua Cheia" e "Adeus" e a tripulação a custo lá vai ouvindo, mas já deixando escapar uma surpreendente atenção. Eu passo músicas à frente e paro no "Farol", que mais doce ao ouvido conquista de vez a trupe. Chegados a "O Baloiço" já alguém diz, e sem jurar penso ter sido o Picachu, pseudo DJ e seguidor inveterado de House Músic "Põe essa outra vez! Põe essa outra vez!"

Durante a viagem fui contando a história do Paulo Bragança, a história que fui ouvindo dos meus irmãos e tantas vezes contada à mesa. O talento perdido dos anos 90 da música portuguesa, o artista estranho que usava roupas largas e extravagantes, a ascensão e desaparecimento de um dos maiores talentos de sempre da música portuguesa. Lembro-me de ter dito algo do género: Quem me dera ver este gajo! Disse-o quase da boca pra fora, quase como forma de provar a minha admiração pelo artista, quase a lançar no universo um sonho acordado.

Pois seja feita a minha vontade.

No passado sábado , quase com contornos mágicos, o sonho tornou-se realidade. Fui ver um concerto do Paulo Bragança. Bem, não foi bem um concerto do Paulo Bragança, mas deu para alimentar a alma e os ouvidos. Pelo meio ouve José Cid e afins, mas o momento alto da noite foi mesmo o Paulo Bragança.

Antes, durante a tarde, o lado mágico desta estória foi ganhando corpo. Eu, que me aproveito da condição de Blogger, lá fiz uns telefonemas na tentativa de conseguir uma entrevista com o Paulo Bragança para o meu Blog de música. Tudo mentira. A entrevista serviu apenas de desculpa para alimentar a alma de um fã numa tentativa de uns minutos de conversa com o artista.

Bragança lá chega ao Multiusos de Guimarães, acompanhado pelo seu Guitarrista Francisco e por um amigo, um Irlandês tranquilo de trato fácil e de uma assertividade desconcertante.

Somos apresentados e o artista segue para o Sound Check. Primeiro tremor ao ouvir a voz do Paulo Bragança a esbarrar nas paredes de um pavilhão vazio.

Feito o sound check lá fomos para o camarim para a tal entrevista. O que se pergunta numa entrevista a um artista que admiras e que tens a sorte de poder entrevistar???? Não sei. Algures entre o lógico, admiração e a tentativa de perceber melhor alguns momentos da vida do artista, eu lá me segurei.

Comecei por perguntar o lógico. Como estava a correr este regresso aos palcos, depois de tanto tempo afastado de Portugal. Bragança responde dizendo que está a correr bem, salientando que se sente surpreso e acima de tudo agradecido pela reacção das pessoas, não só no palco, nas actuações, mas também nas ruas, onde as pessoas o abordam e "dizem coisas muito bonitas. Sinceramente não estava à espera. Depois de 7 anos sem vir a Portugal, fui abordado por uma miúda de vinte e poucos anos na avenida da Liberdade em Lisboa e ela sabia as minhas músicas de cor."

Sigo perguntando se pensou que depois de tantos anos de afastamento, o nome e a obra de Paulo Bragança estariam esquecidos. Francisco, o Guitarrista, resume com brilhantismo. Paulo Bragança estava adormecido na memória dos portugueses, mas nunca esquecido.

Segue-se uma pergunta sobre o papel do Paulo Bragança no fado. A inovação, a forma de trabalhar num meio relativamente fechado e pouco susceptível a essa inovação como é o fado. Tentar perceber se o artista se apercebe e se se inclui numa restrita lista de cantores que num determinado momento mudou a definição de fado. Paulo Bragança desarma-me imediatamente negando que tenha tido existido essa inovação e que ele tenha sido a voz e a cara dessa inovação dentro do fado. Paulo alega que até agora ainda não é visível inovação nenhuma, e que só daqui a 50 anos, quando as pessoas olharem para o fado e para toda a sua história e o seu percurso, é que poderão notar se ouve ou não evolução, e se aquilo que ele fez teve ou não um papel importante nessa inovação.

A conversa termina com a humildade sincera do artista a vir ao de cima, e deixando no ar um exercício de pensamento. Estarão as fronteiras do fado ainda a ser abertas e desbravadas por artistas como Paulo Bragança? Onde ficam essas fronteiras da inovação do fado? Em última análise existencialista, o que é fado???

Depois, mais tarde nesse dia 10 de Dezembro, ouve muita música e a certeza que nesse dia um bocadinho de história foi feito. A história encarregar-se-à de me provar.

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