Berlim, cidade mítica do rock I - Low




Era uma vez o verão quente de 76. Após uma subida aos píncaros da fama na américa - como havia sido o seu fito desde sempre,- e da descida ao inferno da cocaína, David Bowie encontra Brian Eno e trocam ideias sobre uma colaboração. Radica aqui a génese de Low, o primeiro álbum da fase berlinense de Bowie, e talvez o mais genial e influente.

Para trás ficava o sucesso de Young Americans, o protagonismo do filme 'The man who fell on earth' (cuja banda sonora de Bowie tinha sido rejeitada e albergava já algumas das ideias que viriam a incorporar Low), e o álbum de transição 'Station to Station', tão regado de cocaína que se diz que Bowie nem se lembra de o ter gravado.

Nos últimos tempos de Los Angeles Bowie encontra por mero acaso Iggy Pop a vaguear pela rua, após um ano passado sobre a última vez que se haviam encontrado, na ala psiquiátrica do hospital da UCLA onde Iggy se tinha internado voluntáriamente para se tratar da dependência da heroína, tendo em Bowie uma das poucas visitas. Ambos decidem trabalhar em conjunto e fugir da cidade e do ciclo vicioso das drogas. Num documentário que anda aqui por casa, Bowie afirma sorridente que os dois amigos fugiram da capital mundial da cocaína para se enfiarem na capital europeia da heroína[Berlim].

Tony Visconti é contactado no fim do verão de 76, e convidado a participar nas experiências de Bowie e Eno que segundo Bowie poderiam resultar «em algo incrível ou numa completa perda de tempo». Visconti, questionado sobre ideias, sugere que tem andado a brincar com uma coisa nova, o Harmonizer, que viria a definir o som de Low juntamente com o EMS Synth A de Brian Eno. As sessões começam oficialmente em 1 de Setembro de 76.

Prenhe de influências como Neu!, Faust, Tangerine Dream e Kraftwerk, assim como bem conhecedor do trabalho de Eno - principalmente Discreet Music, que terá sido a banda sonora da sua recuperação dos tempos conturbados de LA, - Bowie começa as gravações em França, no Chateau de Herouville, famoso por estar assombrado pelo fantasma de Chopin, ainda sem Eno na primeira semana. O processo era diferente daquele usado pelas bandas até então: primeiro tentava-se criar uma base rítmica rápida e instintivamente, depois os músicos liderados por Carlos Alomar, o director musical, trabalhavam descontraídamente em cima dos primeiros esquiços, de uma forma mais cerebral. Por fim as vozes eram adicionadas, por vezes já na fase das misturas.

Brian Eno, que primeiro se lembrara da música ambiente enquanto preso a uma cama após a um acidente, e tinha idealizado o som da música ambiente como esparso, etéreo, fragmentado e impressionista, chega então quando as músicas que vão ser a primeira parte de Low já se encontram praticamente gravadas. A sua única intervenção nesta primeira parte do disco centra-se por passar alguns sons pelo seu EMS synth, e por algumas opiniões sobre o material gravado.

A banda é constituída pela base rítmica que Bowie já trazia de Station to Station, Alomar na guitarra, Dennis Davis na bateria e Gorge Murray no baixo. Por sugestão de Visconti, Ricky Gardiner é aceite para primeiro guitarrista - se o nome não te diz nada, pergunta-te quem criou o riff de 'The Passenger' de Iggy Pop. Bowie queria Klaus Dinger dos Neu!, mas este recusara. Havia ainda o próprio Bowie, Eno e Roy Young, um inglês radicado em Hamburgo, no piano. No fim da gravação da base rítmica, os músicos são dispensados e ficam Bowie, Eno e Visconti. Eno e Bowie trabalham na segunda parte do álbum, a das ambiências. As músicas são compostas de forma espontânea, e trabalhadas alternadamente em camadas por Bowie e Eno. Warszawa começa com o filho de Visconti a brincar no piano, com Eno a continuar as notas tocadas pela criança. Eno trabalha muitas vezes sozinho, experimentando. Robert Fripp, companheiro musical de longa data de Eno, viria a dizer que que a abordagem de Eno à gravação de álbuns de rock, não era tanto goverando pelo pensamento musical, mas sim pela desconstrução das associações mentais que os músicos normalmente tendiam a aplicar na música. Muito do material no álbum são primeiros takes, e Visconti, conhecedor do método de trabalho de Bowie, tinha sempre as fitas a gravar.

A influência de Eno, embora notória, é normalmente exagerada no que toca à fase berlinense de Bowie. Existe uma ideia muito comum que Eno produziu toda a triologia, o que é totalmente falso(o produtor, no papel e na realidade foi sempre Visconti). Eno interviu pontualmente, e chegou a Low com a primeira parte do álbum praticamente gravada, e tinha feito as malas e partido ainda as vozes não tinham sido gravadas. O seu maior papel em Low é como compositor e músico. Deve-se até a Visconti talvez a maior inovação técnica deste álbum, que é a do tratamento do som da bateria com o harmonizer, que foi infinitamente imitado e é definidor do som de bandas como os Joy Division.

O álbum acaba por ser misturado nos estúdios Hansa, em Berlim, após Bowie ter decidido abandonar o Chateau por as condições técnicas do estúdio não serem as ideais e por a comida piorar de dia para dia. Iggy Pop esteve presente nas gravações em França, chega a cantar em 'What in the World', e pelos vistos foi gravado muito material de 'spoken-word' com histórias do tempo com os Stooges, material que nunca foi editado.

Low é um álbum revolucionário, e um ponto de viragem na carreira de Bowie. É um álbum certamente muito mal conhecido pelos admiradores da lamentável fase Let's Dance, e marca o início da recuperação física, mental e musical de Bowie. É um álbum brutalmente cru e honesto, negro mas eivado de esperança. É para ouvir e reouvir, um dos meus preferidos. Tal como o álbum da banana dos Velvet Underground, foi recebido com frieza, mas o alcance da sua influência está ainda por medir.

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