A vida, e como vivê-la


Sempre gostei de apanhar nas músicas referências para leituras. Com Jim Morrison cheguei a Nietzsche, Rimbaud e Blake; com Morrisey conheci Oscar Wilde, e com Lou Reed fui a Dostoievski. Fico contente de verificar que em várias frentes da edição da FlorCaveira são apontadas referências a um velho amigo meu, cuja leitura é merecida sob muitos pontos de vista.

Quando estudava em Viana do Castelo, cidade de província pouco acostumada a estéticas de vanguarda, não foi sem certo frissom que apareceram em 1994, guitarra na mão e músicas dos Nirvana nos desfiles académicos, uns seres estranhos, provenientes de Guimarães (curiosamente também a minha terra natal). De entre eles sobressaía o Ricardo, com o seu cabelo comprido, capote e citações de Nero desejando ver a cidade a arder (onde é que eu ouvi isto recentemente?). Uma particularidade, debaixo do braço sempre o mesmo livrinho pequeno: «O Banquete», de Soren Kierkegaard.

Neste livro, seis homens num banquete discorrem sobre as mulheres e o amor, sendo todo ele uma reflexão sobre a primeira fase do sistema filosófico de Kierkegaard, a estética. A seguinte citação do blog expressoriente resume brevemente esse sistema:
Para Kierkegaard, são possíveis três posturas diferentes em face da vida: a "estética", dominada pela valorização do que é singular e diferente, o "ético", centrado no geral e nas leis universais, e o "religioso", perspectivado como uma relação privada entre cada um de nós, enquanto indivíduo, e o Outro (o que quer que ele seja). Como seu reverso, o "estético" desemboca no tédio e na melancolia, o "ético" no aborrecimento e na formalidade, enquanto o religioso esconde em si uma angústia sem palavras.
Quando finalmente consegui pôr as mãos na edição da Guimarães Editora, os meus tenros 19 anos conduziram-me a prestar mais atenção ao cativante discurso de Johannes Climacus, o sedutor, do que a qualquer outra coisa mais desse livro, mas os livros são armadilhas, e esse encanto juvenil foi o caminho para leituras mais profundas.

Kierkegaard nasceu em Copenhaga, na Dinamarca em 1813, foi sempre obsessivamente solitário e viveu assombrado pela presença despótica do seu pai. Um homem à frente do seu tempo, foi o precursor directo do existencialismo (a palavra existencialista aparece pela primeira vez no Post-Scriptum conclusivo não científico: Composição mímico-patético-dialéctica), filosofia que tomaria o mundo de assalto um século mais tarde, com Sartre à cabeça, e viria a reflectir sobre o problema da existência, como podemos ler em Kierkegaard em 90 minutos:
A filosofia central do existencialismo - "o problema da existência" - foi considerada um produto típico do século XX, com as suas características alienação, angústia, absurdo e preocupação com temas inquietantes do género. Mas tudo isso provém directamente de Kierkegaard, nascido quase um século antes de Sartre.
O último estágio da filosofia de Kierkegaard é o religioso, e não me custa a crer que é aqui o maior ponto de ligação da FlorCaveira a este autor, que escreve:
A única maneira de um indivíduo escapar ao desespero é "optar pelo próprio eu" e dar o salto da fé.
Agora vamos à música. Eu encontrei referências a Kierkegaard no primeiro (acho eu) CD de Os Pontos Negros, na música "A temer (a tremer)" - uma óbvia referência ao livro «Temor e Tremor» no qual Kierkegaard analisa uma passagem de Abraão na Bíblia. No Guel, Guillul e o Comboio Fantasma, Kierkegaard é nomeado em «A multidão é falsidade», e no clip de «Beijas como uma freira» Kierkegaard é um dos Warholizados.

Abro desde já o concurso aqui nos comentários para quem encontrar mais referências a Kierkegaard. Abstenho-me de fazer o mesmo em relação a Calvino pois não há ocasião em que ele não venha à tona.

Ps: Gostaria de falar muito mais de Kierkegaard, um dos filósofos que mais me ensinou(ainda nem falei na Regine), mas tenho tido queixas de que canso as pessoas com tanta treta.

Comentários

  1. Se o google wave já estivesse a funcionar não precisaria de vir ao blog comentar... bastava-me beber-te via Google Reader e comentar por lá... mas desta vez fiz o esforço de sair do conforto do google-sofá-reader e deixar-te um palavrinha de incentivo.

    "mas tenho tido queixas de que canso as pessoas com tanta treta."

    Encontrar o prazer em nós próprios só se torna um problema quando esse acto de "masturbação" se torna compulsivo e exclui permanentemente terceiros, por isso, enquanto te masturbares assim e "alguns outros" conseguirem encontrar uma brecha para se ligarem a ti, nem que seja à distância, força nisso... "cansa-nos" ;)

    Ainda me lembro de quem me apresentou Kierkegaard e o maravilhoso "Banquete", algures naquela maravilhosa cidade de província chamada Viana.

    Boas tretas

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