Sombras nas palavras da música

Estavam no armário do salão, mal visíveis entaladas entre as revistas de O Independente. As fotocópias da Antologia Poética de Ian Curtis, amarelecidas e silenciosas por mais de quinze anos, voltaram a falar.
- Que curioso, existe um anexo, - já não me recordava -, é a Alegoria da Caverna; o que faz num livro de letras da Joy Division? Em delírios borgianos, ponho-me a imaginar que a Alegoria foi secretamente enxertada naquele exemplar que copiei da biblioteca municipal. O autor de tão estranha obra terá sido um habilidoso leitor que imprimiu e reconstruiu laboriosamente o livro original, induzindo-nos à sua interpretação dos poemas de Curtis, ele que não parava de descrever neles os espectros distorcidos projectados na sua caverna. Esse admirador, um rato de biblioteca, de certeza - como poderia ele conhecer ao mesmo tempo Platão, as Ficções de Borges e Ian Curtis? - tinha Tlön, Uqbar Orbis Tertius ainda frescos na memória, e uma necessidade de comentar Curtis que tinha tanto de irreprimível como de distorcida.
Se tivesse reparado mais cedo, teria sido um belo desporto adivinhar esse estranho por entre as caras fechadas compenetradas na leitura, na biblioteca, mas agora é tarde, como Tlön ou Ian Curtis, a antiga biblioteca é apenas uma projecção na memória.

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