Berlim, cidade mítica do Rock III - Berlin


Vivi no verão do ano passado um dilema musical interessante, o concerto na mesma noite de Lou Reed e Leonard Cohen em Lisboa. O facto de um dos meus irmãos estar cá para ver o Cohen, e de esse espectáculo ser decididamente mais wife-friendly, acabou por exercer muita influência na minha escolha por Cohen, acrescendo o facto de eu ter já visto Lou Reed em Coimbra aqui há uns anos, num bom concerto(contra os meus medos) aliás.

Lou Reed trazia a encenação de Berlin, o seu álbum conceptual maldito sobre um casal de um junkie com uma prostituta, e toda a sua espiral descendente de violência doméstica, abuso de drogas e depressão até ao suicídio, envolvido num ambiente de ópera rock dramático e grandiloquente. Reed tinha à altura do lançamento altas expectativas para este álbum, mas por estar demasiado à frente do seu tempo, Berlin foi rejeitado com veemência e atirado para o caixote dos falhanços comerciais.

Berlin não era o álbum esperado por aqueles que tornaram o disco anterior, Transformer, um grande sucesso muito à custa de «Walk on the Wild Side», uma música povoada de travestis da Factory de Warhol e de freaks, mas no entanto irresistível no arranjo de contrabaixo de Mick Ronson. Reed terá dito aos fãs da altura que o ábum iria «destruí-los completamente. Este vai mostrar-lhes que não ando a brincar». E garanto que não é fácil ultrapassar «The Kids» sem um nó na garganta.

Musicalmente, Berlin recupera músicas já no baú de Lou Reed há muito tempo. A própria faixa título aparece no primeiro e largamente ignorado álbum de estreia a solo, «Lou Reed», com outra letra. «Caroline Says II» era já minha velha conhecida do álbum «VU», que contém músicas inéditas dos Velvet Underground, saído em 85; esta música chamava-se então «Stephanie Says» e tinha um belíssimo acompanhamento de viola d'arco de John Cale. Há evidências de «Man of good fortune» a ser tocada pelos Velvet na Factory, e «Sad Song» e «Oh Jim» estão num registo que contém toda a sessão de gravação do último álbum dos Velvet, «Loaded», que eu encontrei por sorte num centro comercial. Berlin vem trazer a estas canções arranjos grandiosos e novas letras com as quais Reed construiu uma unidade conceptual.

Não é a primeira vez que falo da habilidade cínica de Lou Reed para juntar melodias pop com letras dilacerantes ou, como ouvimos logo na primeira canção, uma descrição de uma festa a um piano melancólico que denuncia que algo vai acabar mal. Tudo isto já Reed fazia nos Velvet, mas em Berlin Lou Reed quer ser escritor, e usar Berlim, cidade dividida onde nunca tinha ido, como metáfora para o por vezes insuperável fosso entre seres humanos.

O insucesso de Berlin magoou Lou Reed profundamente, e foram necessários 34 anos para que ele finalmente acedesse a voltar a enfrenta-lo. Por tudo isto me custou não ir ao Campo Pequeno.

Mas a minha história não acaba como a Caroline de Berlin, com os pulsos cortados. A encenação actual de Berlin passou nos cinemas, e quando aterrou no «Monumental» não deixei escapar. Eu desconfio sempre de Lou Reed, pois quando lhe dá para estragar é de fugir, mas a fidelidade e o cuidado que ele colocou neste espectáculo mostram o respeito e o amor que ele ainda mantém a este seu filho pródigo. A realização de Julian Schnabel tem bom gosto e não interfere muito na imagética da própria música, soltando aqui e ali indicadores difusos para o espírio negro deste álbum, o resto é o concerto e a música, que encontrou neste tempo o seu tempo. E tenho uma cópia em DVD, para os dias felizes.

PS: E como bónus temos Antony Hagerty nos coros e a cantar «Candy Says» como só ele sabe.

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