Bem vindos à idade adulta



Abandonem os delicados sonhos pop. Bem vindos à profundidade, complexidade e desespero da idade adulta. Dêm as boas vindas a Matt Johnson, o vosso anfitrião nesta viajem. Sejam pacientes pois ela é longa, mas a meu ver compensadora.

A pornografia do desespero

Uma das coisas que me fascinou no primeiro álbum dos Velvet Underground foi a doçura melódica com que eram transmitidas sensações líricas totalmente amargas ou completamente aprisionadas em gelo emocional, em conjunto com a luta de titãs entre Reed e Cale - com o primeiro a puxar para a melodia e para o pop, e o segundo a arrastar para a vanguarda e para o minimalismo.

Nas décadas que se seguiram, um autor, sob a capa da banda «The The» foi dos raros que me conseguiu transmitir novamente essa sensação doce/amarga do que afinal é viver; o viver que está longe dos tra-la-las platónicos da pop mainstream. Como podemos ler num ensaio que anda pela net «Pornography of despair: Lust, Desire, and the Music of Matt Johnson», «grande parte do apelo de Johnson reside nas contradições que evoca com letras sombrias e pesadas, sustentadas em melodias atractivas».

Mais que verter os seus maus fígados em letras, desancar as religiões institucionalizadas, ou lutar desesperadamente nos meandros do sofrimento espiritual e na tortura do desejo heterossexual masculino, Johnson toca onde dói, ou seja, nas permanentes contradições e deficiências de mapeamento entre o mundo interior e exterior do ser humano.

Não é que ele se preocupe muito em generalizar ou em colocar-se no lugar do outro, se bem que a simples visão das suas ruínas interiores e das suas opiniões é suficiente para lhe trazer muitas agruras:
Eu certamente não faço as coisas para ser falado ou para ser banido. Eu provavelmente vou parar de falar acerca disso[Religião e abusos dos poderes instituídos] por um tempo e começar a escrever sobre o meu assunto favorito: eu.
Johnson é incómodo, e totalmente avesso ao jogo da música comercial, o que ilumina um pouco as razões do seu quase desconhecimento do público em geral, e o degredo a que foi votada por exemplo a obra prima que é «NakedSelf».

Que tens andado a fazer, Matt?

A carreira de Matt Johnson começa em 81 com «Burning Blue Soul», ainda lançado em nome próprio, que é uma «obra prima de tormento e angústia», comparável a «Marble Index» de Nico, «Berlin», de Lou Reed, «Music for a New Society» de John Cale, «4» de Scott Walker ou «Closer» da Joy Division.

Após um álbum abortado por insatisfação artística de Johnson quando já havia milhares de cópias produzidas - falamos do disco «Pornography of Despair» ainda não editado, - Johnson volta em 83 com um grande álbum: «Soul Mining», segundo o autor o primeiro álbum sob a égide do Ecstasy; um álbum dançável, equilibrando-se entre «o optimismo do New Pop e o pessimismo da experimentação pós-punk». Este é o álbum New Wave dançante para quem prefere a semi-obscuridade do quarto e a garrafa de vodka à festa para a qual foi convidado. Um álbum com melodias «capazes de agradar ao homem do leite, mas com letras potencialmente causadoras de desarranjos intestinais».

Três anos depois, inchado de megalomania, Johnson propõe-nos a avaliação do desejo como doença, num álbum musicalmente complexo, levado aos extremos em vários sentidos, e no qual somos mais uma vez regados com o seu ácido lírico auto-depreciativo, por exemplo quando descreve em «Heartland» o Reino Unido como um cadáver devorado pela inveja, impotência, ganância e falhanço. «Infected», o título do ábum, é a palavra chave que explora o sentido de infecção sob vários prismas, que vão do próprio desejo, à sida, aos bébés-proveta, heroína e terrorismo nuclear. Tatcher e Reagan são os seus ódios de estimação. Não há tabu que se sustente.

Em «Mind Bomb», Johnson volta à carga, desta vez contra as religiões organizadas e os extremos a que chegou a sociedade de consumo e o espectáculo da política, como podemos ouvir em «Armageddon Days Are Here(Again)»:
Islam is rising,
the Christians mobilizing
the world is on its elbows and knees
it's forgotten the message and worships the creeds
ou em «Beat(en) Generation», que já tem a inconfundível marca de Johnny Marr(amigo de longa data) na guitarra:
And our youth, oh youth, are being seduced
by the greedy hands of politics and half truths

The beaten generation, the beaten generation
Reared on a diet of prejudice and mis-information
The beaten generation, the beaten generation
Open your eyes, open your imagination
Em 93 chega «Dusk», uma nova obra prima pop, com a presença de Johhny Marr cada vez mais vincada(«Slow emotion replay» é Smiths, sendo que Morrisey foi raptado por extra-terrestres e substituído por um vocalista digamos, menos delicado).

«Dusk» marca o meu primeiro contacto com os «The The». Aquele riff de guitarra e armónica de Marr em «Dogs of Lust» naquele vídeo com toda a banda a alagar-se em suor enquando canta «Here they come, the dogs of lust», foi uma daquelas dádivas que a MTV prostrou diante de mim, e me fez querer mais.

Todo o ábum gravita em torno do desejo e do tormento interior de Johnson, como transparece em várias canções, a começar por «True happiness this way lies», uma espécie de Credo versão Johnson:

Well, I've been crushing the symptoms but I can't locate the
cause.
Could God really be so cruel?
To give us feelings that could never be fulfilled. Baby!
I've got my sights set on you. I've got my sight set on you
And someday, someday, someday, you'll come my way.
But when you put your arms around me
I'll be looking over your shoulder for something new
'cause I ain't ever found peace upon the breast of a girl
I ain't ever found peace with the religion of the world
I ain't ever found peace at the bottom of a glass
sometimes it seems the more I ask for the less I receive.

Em «Slow emotion replay», Johnson assume a posição Socratiana de que quanto mais vê menos sabe:

So, don't ask me about
War, Religion, or God
Love, Sex, or Death
Because....

Everybody knows what's going wrong with the world
But I don't even know what's going on in myself.
E podíamos ir por aí além, mas se eu dissesse tudo o que me apetecia era um livro e não um post que estaria a escrever. Basta dizer que Johnny Marr disse que este é o álbum que gostou mais de fazer(com os dos Smiths incluídos).

Em 99, os «The The» têm um novo álbum pronto, «Gun Sluts», mas o pessoal da Epic recusa-se a edita-lo se Johnson não juntar umas cançõezinhas tra-la-la ao material extremamente pesado que este lhes mostra. Johnson é Johnson, logo o álbum nunca é editado.

O ano 2000 traz o último ábum dos «The The» à data, «NakedSelf». Este pode ser bem o último álbum dos «The The», e se for é o fecho digno da carreira deste magnífico homem-banda. «NakedSelf» é o ponto onde Johnson consegue cristalizar toda a evolução dos «The The», indo ao paradoxo que produzir um álbum agressivo e altamente incómodo, mas que o ouvinte atento e persistente vai polindo até atingir o núcleo melódico que caracteriza as composições dos «The The». No ensaio já referido podemos ler:
[NakedSelf] aglomera perto de 20 anos das tentativas de Johnson no sentido de criar uma paisagem musical que reflicta as suas inclinações enquanto activista que está preocupado com o impacto das forças globais na vida do indivíduo.
A temática deste álbum é sombria, desde o trabalho gráfico da embalagem, até às inevitáveis letras. «Diesel Breeze» é descrita no ensaio «Pornography of Despair» da seguinte forma:
O comboio de Johnson entra na cidade vindo de um qualquer buraco subterrâneo, num mundo de incerteza, medo e frieza onde o único recurso é negar os sentimentos de desespero e virar-lhe as costas.
A solidão é visitada em «The Whisperers», que também espeta o endoscópio bem fundo em algumas fragilidades da vida conjugal:
And now she wants to cry
Staying in on Friday night
Lying in her birthday suit
And listening to the bickering
From the room above
And wondering if it’s fear of loneliness or love
That keeps people like that together
Forever ...

Don’t get sad
When people that you trust stab you in the back
So, you thought they were your friends?
Now you know (now you know)
There’s one thing in life that holds
You’re on your own (you’ve gotta grow)
Sendo «NakedSelf» uma obra prima(concordemos ou não com as opiniões de Johnson), ainda mais uma obra prima mal conhecida e negligenciada pela editora, merece uma audição cuidada.

E?

«Luxúria, solidão, desespero e envelhecimento são algumas das emoções que Johnson emparelha com o desejo e, quando o seu trabalho é visto na totalidade, é claro que existem importantes conexões com o consumismo contemporâneo e a globalização». Eu não concluiria melhor.

Ps: Matt Johnson gravou em 95 um álbum de versões de Hank Williams, «Hanky Panky», um excelente álbum, no qual Johnson reinventa as canções de Williams de forma a serem elas próprias indistintas do restante património dos The The.

Comentários

Mensagens populares