Erudição campónia




Da entrevista de Tom Zé para a qual já apontei num post anterior, lembro-me de uma passagem em ele mencionava que a escrita de Guimarães Rosa era o que de mais parecido conhecia com o dialecto de português arcaico praticado no balcão da loja do seu pai no sertão da Baía. Os colegas acusavam-no de ser um pretenso intelectualóide por mencionar Guimarães Rosa, demasiado erudito para o comum dos mortais. Ele levou a música da roça para São Paulo e David Byrne achou que a sua música era parecida com o que se fazia na vanguarda Nova Iorquina. Desprezado pelo Brasil ele descobriu que a arte da pobreza mais pobre era a vanguarda em Nova Iorque.

Esta estória leva-me à minha infância e à aldeia vizinha de S.Lourenço.

Era difícil ir à missa aquela freguesia. Íamos algumas vezes nas actividades dos escuteiros, mas era certo e sabido que a coisa ia acabar em embaraço.

A razão de tal embaraço não era uma, mas duas. Em primeiro lugar aquela sineta ridícula que tocavam sempre que o padre fazia a consagração da óstia. Olhar para o infinito, pensar na morte de entes queridos ou em dores insuportáveis eram ferramentas à mão para evitar a risada descontrolada, mas tal esforço era inglório porque vinha o pior: o canto das mulheres do coro.

Nunca ninguém do mundo urbano e civilizado(a aldeia ao lado) tinha ouvido semelhante cacofonia de vozes com tão medonhos arranjos polifónicos. Os chefes enfiavam-se debaixo dos bancos perante a incapacidade de controlar o mal disfarçado 'hi hi hi' de toda a rapaziada ali presente, tal o ridículo daquelas cantarolices.

Pois vim há pouco tempo a ouvir as recolhas de Giacometti e, surpresa avassaladora, no cd de recolhas do minho vim a descobrir que os cantares de S.Lourenço de Sande são vanguarda em Lisboa. Juro a pés juntos que Giacometti recolheu aqueles cantares na missa de S. Lourenço. Tentei até em vão procurar os 'hi hi hi' na gravação, mas sem sucesso. Bem, se não foi em S. Lourenço foi em Santa Cristina, ou por ali, em Sande é que não foi.

Pois é, as voltas que a cultura dá.

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