O sonho acabou, que posso eu dizer?


Em 1970 estava tudo acabado. A morte de Brian Epstein em 68 precipitou os Beatles numa anarquia de génios. O Álbum Branco tem muitas boas canções, mas não é um álbum de uma banda. Let it Be é gravado numa vertigem megalomaníaca de barco sem almirante, com confrontos e rapto dos masters da gravação por Phil Spector, sendo o último álbum a ser lançado apesar de ser o penúltimo a ser gravado. Paul McCartney tenta uma OPA hostil pondo o sogro ao comando do management, mas não é bem sucedido. Ringo sai da banda porque acha que os outros pensam que a culpa é dele, sendo que os outros pensam que os outros pensam que a culpa é deles (estão a ver?), e afinal já o Lloyd Cole sabia que a culpa era da Yoko. Num último estertor reunem-se cavalheirescamente para Abbey Road, mas Harrison não permite que seja interpretado qualquer tema seu no célebre concerto do telhado. Acho que Lennon, entretando a braços com a heroína, ou com a heroína nos braços - não sei bem -, estava a precisar de algo.

Uns anos após a experiência na Índia em que o guru mandava rezar mas ficava com as mais bonitas para si, Lennon precisava de algo mesmo, mesmo cool.

O mais cool pelas medidas de 70 era a Primal Scream Therapy, uma terapia avant-garde cujas maiores realizações são, não curar maníacos excêntricos, mas dar origens a álbuns e a nomes de banda. Arthur Janov incitava os seus pacientes a regredir à infância e a gritar, como se diz na minha terra, a botar tudo cá pra fora.

Assim fizeram Lennon e mais a sua Yoko, e como a gritaria e a regressão eram algo que não era inédito nos meandros do Rock'n'Roll, Lennon achou que da experiência poderia nascer música. Foram gravados dois álbuns: Yoko Ono/Plastic Ono Band e John Lennon/Plastic Ono Band. Confesso aqui que quando fui comprar o segundo trouxe o primeiro para casa, o que me valeu alguns minutos de confusão e horror. Por fim lá me trocaram o cd, e foi-me dado a ouvir um álbum puro, autêntico, sem defesas.

«Mother» acerta contas com o abandono pelos pais, «Isolation» fala do medo, «Hold on» é sobre resistência; «I found out» entra na descoberta de si mesmo. «Love» é sobre ser-se humano. «God» é sobre a libertação de todo o tipo de crenças até ao mais básico. Claro que muito do que Lennon aqui professa foi contraditado nos episódios seguintes, mas isso só prova que ele era humano.

John Lennon/Plastic Ono Band é o grito de libertação de um ser humano fragilizado, que o levaria à pureza de «Imagine» no ano seguinte, pureza tão branca que só poderá estar destinada à nódoa e à deriva - no famoso fim de semana de 14 meses anos depois.

John Lennon/Plastic Ono Band é um álbum em que Lennon está mais nu que em «Two Virgins», mais exposto e mais honesto. É um álbum totalmente espiritual, dos mais bonitos que se fizeram.

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