Filho de Rimbaud
Reza a história que Jean Arthur Rimbaud escreveu toda a sua poesia antes dos 21 anos. Depois disso foi vivê-la. Esta criança Shakespeare, como lhe chamou Victor Hugo, partiu para parte incerta, diz-se que traficou escravos na Abissínia, e foi convertido ao cristianismo à força pela irmã, no leito de morte, em Paris, pouco após ter feito 37 anos. Por ele Paul Verlaine, grande poeta simbolista, deixou a mulher e filho e levou a paixão ao ponto de sobre ele desferir dois tiros por entre uma discussão certamente embebida em absinto.
Este desejo de partir não é estranho à sua poesia, vejamos um extracto de O Barco Bêbado:
Como eu descia pelos rios impassíveis,senti-me libertar de meus rebocadores.Tomaram-nos por alvo os índios irascíveise pregaram-nos nus aos postes multicores.Já não me preocupava a carga que eu trazia,fosse o trigo flamengo ou o algodão inglês.Quando dos homens se acabou a gritaria,pelos rios voguei, liberto de uma vez.Ante o irado ranger das marés, me lancei,mais surdo que infantis cabeças, no outro inverno,fugindo! E para trás penínsulas deixeique jamais viram tão glorioso desgoverno.
Rimbaud voltou para morrer, ficaram as «Iluminações», a «Cerveja no Inferno» e o «Barco Bêbado», e uma influência vasta no mundo que se seguiu...Patti Smith, Jim Morrison, em Portugal o herdeiro mais directo Al Berto, que ele mesmo já perto do fim escreve 'A morte de Rimbaud', poema imortal.
Agora estou aqui para falar, mais uma vez, de Paulo Bragança, filho de Rimbaud. Toda a sua obra está impregnada dessa vertigem de excesso, do apego ao limite e à vivência nos extremos.
Paulo Bragança, é ainda um jovem. Gravou até à data quatro álbuns, dois de fado tocado de forma tradicional, mas nada tradicionais na lírica(Notas sobre a alma - 92 e Mistério do Fado - 96), e dois revolucionários passos em frente na música popular portuguesa(Amai - 94 e Lua Semi-Nua - 2001).
Como Rimbaud, apareceu, qual estrela fulgurante subiu ao mais alto firmamento, sendo mesmo editado por David Byrne na Luaka Bop. A sua música, como a poesia de Rimbaud, abre o peito às balas e não se distingue da sua vida. A vida de Paulo Bragança é a sua música, como ele diz numa entrevista acerca de «Lua semi-nua»:
«Isto não é só música, não é só uma carreira. Isto é a minha vida. E a minha vida entra, sempre, para o bem e para o mal, pela minha carreira...»Como Rimbaud, Bragança foi viver a sua música, e não ouvimos falar dele desde 2001...até agora, que aparece como actor principal no filme Henry and Sunny, do irlandês Fergal Rock. A música não o desmente(Quando eu for embora):
Chora, por que deixa,
tudo aquilo que eu amei
sigo, sem destino,
eu sei que me perderei
quando eu for embora,
minha alma chora
Paulo Bragança, em arrojo, qualidade, energia e efemeridade só tem paralelo em António Variações, que foi um cometa que passou, e cujo rasto ainda seguimos 25 anos depois.
Mas Paulo Bragança, a ser um cometa, estou certo que seja o Halley. Tem 42 anos, uma voz única e uma alma que alguém disse só ter paralelo em Amália. Hoje, com a proliferação do fado tradicional e menos tradicional, do fado chique, do fado assim assim, do roque tradicional e por aí fora, ainda não há em Portugal nada que se lhe assemelhe...nada.
Paulo Bragança não está esquecido, ainda agora o seu «Imenso» tem interpretação integral no aclamado filme «Morrer como um Homem»* de João Pedro Rodrigues. Não quero fazer de Paulo Bragança o D. Sebastião da música portuguesa...mas que desejo que volte, isso desejo.
Entretanto podemos sempre visita-lo no myspace ou ser seus fãs no facebook.
* Não resisto a citar o artigo do Ípsilon de Mário Jorge Torres, que descreve a parte em que o fado «Imenso» é interpretado:
Se a viagem evoca as evoluções peripatéticas de "O Fantasma", a sequência final (que bem que João Pedro Rodrigues filma cemitérios e estátuas fúnebres!) remete para "Odete", numa exemplar coerência, com o "travelling" que nos mostra o protagonista transformado em anjo, "alma" separada do corpo jazente (uma espécie de Nossa Senhora dos Travestis), a cantar com a sua própria voz, "Imenso", fado de Paulo Bragança, com Lisboa, o Tejo e tudo em fundo, exploração profunda da dimensão sagrada do amor e da morte e do amor para além da morte.
Excelente. É, sem direito a contraditório, o post do ano.
ResponderEliminarSobre fados, fadistas e afins, vi aqui há uns tempos atrás um programa da Câmara Clara dedicado ao fado. Um dos convidados foi o Camané, e quando a Paula Moura Pinheiro fala do Paulo Bragança o homem quase que se ofendeu. Como quem se sente ameaçado acabou por dizer que o Paulo Bragança não é bem um fadista e que o que ele faz não é bem fado.
Bem, o Paulo Bragança não é certamente um pastiche de fado. Para mim, e do que conheço, só há/houve 3 fadistas: Amália, Carlos do Carmo e Paulo Bragança
Quanto ao Rimbaud, para além do Al Berto, O Lamento de Rimbaud. Talvez a melhor música do Sérgio Godinho. Talvez do seu melhor álbum.
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