Complexo de Épico




Era 1998, decorria a grande exposição de Lisboa; cansado de palmilhar terreno ansiava ainda por uma última satisfação: o concerto de David Byrne na praça Sony. Bem, não era bem um concerto de Byrne, porque tinha a participação do Angolano Waldemar Bastos e de um outro desconhecido: Tom Zé.

A experiência de tanto esperar para no final assistir à entrada de Byrne, que cantou o grande hit «I wanna love somebody» de Whitney Houston(para se pirar de seguida) não foi a mais compensadora, mas aquele brasileiro ficou a bater cá dentro.

Tom Zé é um tropicalista original, com Caetano, Nara Leão, Gil, Gal Costa ou os mutantes. É das pessoas com o pensamento mais excêntrico que tive oportunidade de escutar, tanto na música como em entrevista. É urgente ouvir a sua entrevista a Carlos Vaz Marques da TSF para o programa «Pessoal e Transmissível» enquanto está disponível. O seu pensamento original é um daqueles gatilhos que despoleta a projecção da nossa mente em todas as direcções.

Tom Zé andou apagado das edições e dos espectáculos quase duas décadas até Byrne ter redescoberto o seu «Estudando o Samba» e o ter contratatado para a Luaka Bop. A sua música, quantas vezes experimental, sempre provocatória, destila génio puro e inteligência. Tom Zé nunca sai do meu Ipod, e a ele acorro quando me quero rir do mundo e de mim mesmo.

Ora aqui vai a receita para o narcisismo da qual, ao que vejo, nem só os compositores brasileiros estão precisados:

Todo compositor brasileiro
é um complexado.

Por que então esta mania danada,
esta preocupação
de falar tão sério,
de parecer tão sério
de ser tão sério
de sorrir tão sério
de chorar tão sério
de brincar tão sério
de amar tão sério?

Ai, meu Deus do céu,
vai ser sério assim no inferno!

Por que então esta metáfora-coringa
chamada "válida",
que não lhe sai da boca,
como se algum pesadelo
estivesse ameaçando
os nossos compassos
com cadeiras de roda, roda, roda, roda?

E por que então esta vontade
de parecer herói
ou professor universitário
(aquela tal classe
que, ou passa a aprender com os alunos
- quer dizer, com a rua -
ou não vai sobreviver)?

Porque a cobra
já começou
a comer a si mesma pela cauda,
sendo ao mesmo tempo
a fome e a comida.

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