A vida depois de Deus


É assim o início do fim de «A vida depois de Deus» de Douglas Coupland:

Ora aqui está o meu segredo:
Digo-vos com o coração nas mãos que duvido que alguma vez volte a conseguir, por isso oxalá estejam num quarto sossegado quando ouvirem estas palavras. O meu segredo é que preciso de Deus - estou doente e já não me safo sozinho. Preciso que Deus me ajude, porque pareço já não ser capaz de dar; que me ajude a ser bom, porque pareço já não ser capaz de bondade; que me ajude a amar, porque pareço já não ser capaz de amar.

Quem profere estas palavras é um homem amargurado, que à semelhança do herói de 'In to the wild'(grande banda sonora do Vedder) se embrenha nas florestas da British Columbia para se procurar:

...foram as recordações dessas paisagens que me levaram a escolher retirar-me mais para dentro de mim e meter-me no território selvagem.

O que vai no imaginário deste homem? A paranóia do nuclear, o desencanto com a pós-modernidade, em que tudo está explicado e todas as emoções mercantilizadas; o incessante jorrar de comerciais a induzirem-no a fazer isto e aquilo; o vazio de espiritualidade, preso por ganchos a um materialismo excessivo no qual os templos se transferem para os centros comerciais.

Comprei este livro em 95 - ainda tem um bilhete de combóio dessa data a marcar as páginas. Nessa altura vivíamos em Portugal uma certa onda de prosperidade embalada por rios de subsídios da União Europeia. Tudo parecia brilhante à nossa frente, toda a gente começava a viver um pouco melhor, e já se começava a sentir um pouco aquela atmosfera de invencibilidade face ao destino, e a frequência dos cultos começava a ressentir-se fortemente disso. O «temor a Deus» como a minha avó o proferia começava a ficar um pouco demodé.

Eu sou talvez da segunda geração de pessoas lá na minha zona rural que se filiou numa cultura pop-rock, tradicionalmente irreverente e avessa à religião(com excepções). A primeira geração é uma geração completamente perdida: muitos mortos com as drogas, outros que são farrapos humanos. Pagaram caro a sua ingenuidade face a essa cultura emergente, entrando nela desprotegidos. A geração seguinte, a minha, cresceu já com alguma informação, e com os exemplos da primeira geração. Esta geração benificiou do melhoramento das condições socio-económicas patrocinado pela generosidade nossos parceiros comunitários, e foi práticamente a primeira que pôde ir para a universidade sem ter que obedecer à máxima «se queres estudar vai para o seminário».

O acesso à literatura e à informação mais científica, ainda pré-web, levou-nos a muitos a desconfiar enormemente das ladaínhas que domingo após domingo nos eram impingidas na missa. Certas contradições entre a prédica e a prática e uma certa atitude monolítica e impositiva da igreja, sem direito a porquês, também ajudaram a esse sentimento de desconfiança. O que se passou é que muitos(eu por volta dos 15 anos) abandonaram a igreja, não por ausência de fé, mas por ausência de identificação com aquela forma de praticar a fé.

Voltamos ao livro aproveitando o embalo do parágrafo anterior. Conseguimos viver sem Deus? Como é que preenchemos esse vazio? Eu olho à minha volta e vejo coisas engraçadas. Há os que só se lembram de Deus quando estão enrascados: aqui me penitencio porque é também um pouco o meu caso; outros vivem num frenesim materialista e na esperança que tudo se resolve com o seguro de saúde certo(o mais caro, claro); outros ainda ostentam orgulhosamente a sua anti-religiosidade e andam a ler sucedâneos pobres da bíblia como toda a obra do Paulo Coelho e os livros de auto-ajuda(salvé ò Segredo).

Creio que a minha geração é de transição, e que começa e emergir uma nova vaga de pessoas que não se envergonha de ostentar a sua fé, o que é verdadeiramente saudável e livre. Mais do que isso, começa-se um pouco a vencer o tabu de se discutir religião, fé e espiritualidade em maior profundidade. Seja pelo ponto de vista da Bíblia, do Alcorão ou outro qualquer, penso ser essencial que se fale da espiritualidade, que é uma dimensão completamente indissociável da essência do ser humano, porque a mim me parece que depois de Deus virá....Deus, ou o que lhe quisermos chamar.

No que me toca, até gosto da Bíblia - ainda me lembro de ganhar um 'Novo Testamento' pequenino, que ainda hoje guardo, por dominar as parábolas na catequese. Os meus filhos também adoram as histórias da sua 'Bíblia para crianças'; não há tabus quanto a isso. A sua interpretação à luz da fé é um outro assunto que não cabe neste já longo post.

Há no entanto outros olhares sobre o problema de Deus, que também são dignos de atenção e discussão. Temos por exemplo a visão de Sartre, que diz só uma vez ter sentido Deus, sem que tal tenha sido uma experiência deleitosa por aí além:

Uma só vez experimentei a sensação de que Ele existia. Eu brincara com fósforos e queimara um pequeno tapete; estava a dissimular o meu crime, quando de súbito Deus me viu; senti seu olhar dentro de minha cabeça e sobre as minhas mãos; eu rodopiava pela casa de banho, horrivelmente visível, um alvo vivo. (As Palavras, p. 75)

Vejamos também o que Sartre diz sobre o crente:

O crente, neste caso, está condenado ao desespero, pois só encontra o fundamento da sua existência na sua relação com o Eterno. Contudo, a fé em Deus não prejudica o homem, pois corresponde à possível construção da sua vida enquanto parte da humanidade.

Sartre continua ainda driblando em direcção à baliza:

...a existência de Deus e a do homem livre são, na realidade, desprovidas de qualquer relação concreta, isto é, para que o homem viva, é necessário que Deus desapareça.

A pergunta que eu deixo é:

Terá o Homem dimensão para suportar a angústia da ausência de Deus?

Parece-me que o desabafo do nosso protagonista em «A vida depois de Deus» já nos vai dizendo algo no sentido da resposta.


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